terça-feira, 27 de março de 2012

A doença da carência (e, obviamente, da falta do que falar)

Acho interessantíssima uma sala de espera de consultório médico. É um lugar em que há a maior troca de carências que se pode imaginar. As pessoas sentam e se sentem na obrigação de conversar e mais, de relatar suas doenças, as doenças de seus  parentes, enfim, a doença de qualquer um que inspire piedade. Alguém deveria dizer que, em sala de espera de consultório médico, pode-se falar de assunto que não seja doença. Acredite, pode-se falar de futebol, política e até sobre o BBB. Se bem que este último me deixa com vontade de ouvir falar sobre doença.
Outro dia, duas senhoras disputavam quem teria sofrido de mais moléstias. Uma apontava um cálculo renal e suas dores tão cantadas pelos quatro cantos do mundo. A outra, não se dando por vencida, disparou com uma úlcera gástrica. Dores, dores, dores e endoscopias. Sentindo que perderia terreno a primeira senhora pegou pesado e usou a doença de um parente distante, uma espécie de golpe baixo nesse tipo de disputa. Ela invocou um tio que morrera de câncer em apenas 1 mês... dores, dores, dores.. terríveis e fim.
Mas, por fim, uma senhorinha que, aparentemente, não morrera ainda por problemas auditivos, afinal, Deus já chamava há tempos, mas ela não ouvia, deu um golpe de misercórdia nas duas.
- Espinhela caída, sussurrou a senhora. Espinhela caída, repetiu.
Uma das senhoras se benzeu com o sinal da cruz. A outra colocou a mão na boca e ficou com os olhos marejados de lágrimas.
Afinal de contas, espinhela caída e vento virado, só benzendo. E como hoje não há mais benzedeiras como antigamente, é fatal.
O médico abriu a porta e as encontrou consternadas, pálidas...
Uma delas ousou inquirir:
- O senhor benze, não benze doutor?

sábado, 24 de março de 2012

Pesos e medidas - Quanto vale o profissional?


Outro dia um colega do curso de enfermagem, onde leciono comunicação e expressão, estava indignado. Ele dizia ter um processo trabalhista contra determinada empresa e que o advogado lhe cobrara 30% do que ele iria receber e explicou que isso era padrão. Dias depois o advogado lhe procurou para pedir se ele conseguia uns exames para ele (o advogado), obviamente, de graça. Ele não pensou duas vezes e disse:
- Olha, de graça não dá. Mas o que eu posso fazer é o seguinte: uma pessoa normal tem 70 quilos, você tem uns 110, eu faço um cálculo proporcional e te cobro com base no que uma pessoa do seu peso pagaria.
Ao que o advogado retrucou:
Ué, mas não é o mesmo exame?
E ele respondeu:
- Sim.. mas não é o mesmo processo.

Na verdade, não fica uma crítica ao advogado, mas um questionamento de quão pouco a saúde e a educação valem nesse país. Imagina se o professor cobrasse em função da limitação do aluno. Olha, você sabe muito pouco do conteúdo, vou ter que cobrar mais caro. Claro que seria um absurdo, mas a questão é: Por que dois setores de vital importância em uma sociedade são tão desmerecidos?
São quarenta anos de estrada e sinto-me seguro para dizer que educação e saúde são as duas coisas mais esculhambadas nesse país.
São temáticas bissextas... aparecem de quatro em quatro anos e logo desaparecem para reaparecer daqui a 4 anos.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Só o tempo traz certas coisas


Tempus edax rerum
Leciono em uma turma de 1º período de um curso superior freqüentado predominantemente por garotos e garotas de 18 a 20 anos e outro dia deparei-me com um situação inusitada. Como explicar um texto que falava sobre o massacre da rotina e o processo de coisificação do homem no trabalho cotidiano se estava diante de um público que acabou de sair do ensino médio, oriundos de uma classe média que, muitas vezes, nunca trabalhou e só conhece como rotina o caminho de casa para escola, da escola para o cursinho...? Enfim, o texto se perdeu.
Desisti de aprofundar análises de interpretação e falei que havia coisas que eles só entenderiam com o tempo. Para exemplificar citei uma música dos Titãs, "Epitáfio", e disse que ela só lhes faria sentido depois dos 30 anos. Até lá seria só mais “uma musiquinha piegas”, como ouvi de um garoto de 20 anos uma vez).
Há entendimentos que só tempo traz. Não adianta acelerar os relógios. Eles são implacáveis e se deslocam a velocidade de 60 minutos por hora. Precisamos do tempo e das feridas do tempo para entender o tempo e as feridas do tempo. Não há livro que esboce uma teoria para dar conta disso tudo.
De frente para a turma, eu percebi que poderia falar horas sobre aquele tema e seria como nada, como palavras que se perdiam no ar e se desfaziam. Sob o olhar de sobrancelhas franzidas, desisti.
Toquei em frente na esperança de que um dia eles, aos 40, se lembrem que um professor quarentão que um dia tentou falar de umas coisas que.... Ah... entendi.
Só o tempo certas coisas.. só tempo.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Sem condições de viver em sociedade


Eu até entendo (mas não justifico) uma pessoa, em um ato de descontrole, matar a outra. Uma briga, uma arma, uma discussão, uma ameaça, um confronto, um descontrole, um tiro, um morto. Isso é o ser humano. Agir por impulso sob forte emoção. Depois ver a besteira que fez.
Entretanto, o que me assusta não são esses casos, mas aqueles premeditados. Recentemente, vi um caso nos jornais de um casal que planejou, comprou o álcool, comprou a corda, comprou o isqueiro, escolheu o melhor momento, aproximou-se de um morador de rua, amarrou-o a um poste, jogou álcool e ateou fogo em seu corpo. 
Houve também o casos dos moradores de rua de Brasília que vêm sendo assassinados. Tiros na cabeça. Simples, fácil e rápido. Uma amostra da evolução no processo de execução em uma cidade que nos anos 90 teve por tradição queimar moradores de rua vivo. Pois sim.. até os carrascos evoluem.
Não entendo (e muito menos justifico) uma pessoa planejar, se organizar, adquirir os recursos necessários, preparar, colocar o plano em ação, enfim, estruturar em detalhes a sua barbárie com requintes e cuidados que deixariam Jack, o estripador, parecendo um animador de festa infantil.
Há coisas na vida que não possuem explicação, nem perdão. Trata-se de pessoas completamente inaptas ao convívio social. Seres desequilibrados e dotados de um potencial de maldade que os torna uma ameaça ao meio. Infelizmente, como solução, só mesmo uma cela com uma pequena portinha para passar um prato de comida e não oferecer ameaça aos carcereiros.

Agora, se tem mais gente achando normal agir assim, eu assumo: eu é que não tenho mais condição de conviver em sociedade.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Aprenda a amar sua solidão


Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite  
(Clarisse Lispector)

A solidão é a única coisa que nos é legítima e ainda assim, passamos a vida nos embriagando com a ideia de que temos amigos, temos família, temos lugar, temos rótulos que nos agregam e inserem em algum lugar, em algum grupo. Entretanto, a vida é um quarto escuro em que entramos sozinhos, somos tateados, abalroados, trombados, amparados por mão que não são nossas e que não possuem compromissos a não ser com elas mesmas. Quando chegamos à porta de saída, abrimo-la e batemo-la, sozinhos. Do jeito que entramos.
Aprendemos tudo, menos o fato de que a única companhia que nos será certa somos nós mesmos. Iludimo-nos. Amigo é questão de momento, conveniência e ocasião e os ventos mudam mais rápido do que imaginamos. Família são sócios nossos nessa prisão de carne chamada corpo, mas também comprometidos e presos as suas próprias celas de matéria orgânica. Lugares não são nossos, são do mundo. Ocupamo-los e temos que entrar praticando o cotidiano exercício de deixá-lo no minuto seguinte. E os rótulos, esses são as maiores ilusões, bastiões de toda vaidade e segregação. Iludem-nos com a ideia de que somos algo completamente diferente do que somos.
A vida é isso. Entrar e sair de uma porta. No mais, é ilusão. É uma imensa confusão nascida numa discussão esquizofrênica de quem somos, com quem pensamos que somos e com quem os outros imaginam que somos. 

sexta-feira, 2 de março de 2012

Um Indiana Jones em cada perfil

O facebook nos trouxe um sentimento meio confuso. Um misto de surpresa ou até mesmo inveja ao vermos alguns amigos/colegas/conhecidos de infância em situações, lugares, trabalhos, lazeres etc que impressionam. Acredite, isso, aos 40 anos, não é raro: ter amigos/colegas/conhecidos que viveram como Indiana Jones ou Lara Croft.

Algumas vezes, clico em uns perfis de velhos companheiros e descubro que desde o tempo em que nos conhecemos até hoje,que eles fizeram uma viagem religiosa à India, se engajaram na luta por um Tibet livre, mergulharam com Golfinhos das Ilhas Galápagos, saltaram de paraquedas sobre o deserto de Nevada/USA, ajudaram um grupo de dissidentes africanos a fugirem de um ditador sanguinário, escaparam de uma milícia talibã no Paquistão, viajaram toda a Europa com uma mochila e terminaram bebendo com sede um vinho vagabundo em uma ruela do Marrocos enquanto fugiam de agentes secretos ingleses.

O facebook se tornou uma terra fantástica onde podemos ser tudo aquilo que holywood nos mostrou que era ideal de vida, aventura, romance, comédia e suspense.

Nesse meio tempo, levanto da cadeira e vou buscar um analgésico e fazer um xixi, pois já estou sentado trabalhando há horas em um relatório e o facebook foi só um refresco.

Passo pela janela da sala e dou uma olhada para conferir. Realmente, não há agentes secretos espreitando minha rua. Nem umzinho... continuo a caminho do banheiro.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Quanto custa o carnaval? E quem paga a conta?


Entra ano e sai ano, sempre me pergunto isso. Quanto custa o carnaval? Não falo das festas nos sambódromos Brasil afora numa espécie de CTRL+C/CTRL+V do carnaval carioca, mas me pergunto sobre o custo colateral da festa. Qual o custo dos engarrafamentos? E dos acidentes? Qual o custo dos atendimentos médicos provocados pelos excessos? 
Qual o custo da limpeza? Qual o custo da segurança? E os banheiros químicos...? Quanto custam as festas de rua com seus conjuntos e bandinhas contratadas por prefeituras miseráveis para animar a multidão? E quanto custam os seguranças? Quanto custa montar o palco e as luzes? E os descontroles que geram danos ao patrimônio público ou privado, quanto custa pagar essa conta? E aqueles enfeites “sem vergonha que colocam na rua com iluminação adicional. Quanto custa aquilo?
E os mortos nas estradas, nas overdoses, nas brigas, nos excessos provocados pelas drogas e bebida (que para mim é a mesma coisa), qual o custo que se tem quando alguém morre e se projeta o ganho presumido com base na expectativa de vida e área de atuação? Quanto custa essa brincadeira toda?
Não. Não quero que a festa acabe. Acho que deve existir com seus excessos ou não. Só faço essa indagação para entender se, na relação receita despesa, estamos diante de um evento que nos dá grande lucro ou prejuízo. Acho que tudo isso deve existir, afinal, movimenta dinheiro para o comércio e serviços. Só me questiono é se o estado tem que financiar uma banquete onde só poucos comem os lucros. 
Que se dê a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, a começar por entregar a fatura para quem lhe é direito.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Quem disse que isso aqui é seu?


A maior ilusão da vida é a de pertencimento. Achamos que pertencemos a um grupo, a uma nação, a uma raça, a um clã, enfim, nós pertencemos ao mundo e aos pequenos mundos que existem nele. Acreditamos, na outra via dessa mão, que o mundo nos pertence, que são nossos os filhos, os amigos, a mulher/marido, os parentes, o emprego, os títulos, os carros, imóveis tudo. E, nesse fluxo, vivemos como se a nossa vida fosse eterna, como se fôssemos ser donos de tudo o tempo todo para sempre.
O problema é que a vida é mais curta do que se imagina e, a nós, nem o nosso corpo pertence. Ele é matéria orgânica no aguardo de ser consumida por vermes. Nem seus olhos, que, nesse momento, servem para ler este texto são seus. A vida lhe deu o direito de usá-los por um tempo que está em aberto. Pode ser de meses, anos ou décadas. Mas ele não é seu. Eles não lhe pertencem. Assim são todas as coisas.
A maioria das inimizades e desavenças em nossa existência são decorrentes de brigas que temos porque alguém ameaça nos tomar aquilo que não é nosso (e nunca será). Aliás, nem é dele (de quem quer tomar). Nessa ânsia de resguardar tudo isso que não me pertence (títulos, cargos, dinheiro, bens, etc...), matamos aquilo que realmente nos é de direito, o afeto que cultivamos. Isso sim é nosso de verdade e levamos mesmo depois que os vermes devorarem o nosso último pedaço de carne putrefacta.
Desprezamos esse afeto, ignoramos nossa finitude, agarramo-nos ao sentido de pertencimento a um mundo em que podemos ser tudo, menos parte dele. Estamos nele, de passagem, por um tempo cruelmente não determinado, exatamente para que possamos aprender o quanto não lhe pertencemos.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Enfermagem de verdade, ofício para poucos

Leciono no curso de enfermagem há alguns anos e me faltou, nesse tempo, oportunidade dizer aos meninos e meninas de lá como eu os admiro. Muito alunos de alguns cursos da área de saúde querem é desfilar com jalequinho branco para todo mundo dizer: olha, lá vai um futuro “dr”. Hã.. como assim doutor? Bom, mas isso é outra história.
Os enfermeiros não. Raramente os vemos desfilando de jaleco embora no ambiente de trabalho usem as mesmas roupas que os “doutores”. (Hã..? Como assim de novo? Ah deixa pra lá.) O enfermeiro é uma espécie de médico a quem não cabem as glórias e o status dos homens de branco. Afinal, eles fazem o serviço pesado. Limpam cocô, tratam feridas purulentas, colocam sonda, carregam idosos quase desmontando as peças de tão debilitados, tiram sangue, recolhem urina e fezes, limpam o vômito e no meio dos excrementos humanos não há espaço para a glória. Quando muito gratidão, mas não glória.
Isso é vocação. Cuidar do próximo no sentido mais amplo da sua palavra, no sentido de ser as mãos que limpam e recuperam quando as suas mãos não mais atendem a essa função. Isso é doação. No final do expediente, os jalequinhos brancos  ficam pendurados no local de trabalho, pois eles sabem que jaleco não é roupa de grife e que rua é ambiente infectado para se desfilar com roupa que frequenta local com pessoas, muitas vezes, frágeis e expostas a todo tipo de infecção.
Não esperam o muito obrigado, não aguardam o rótulo de doutor, até porque, por sensatez, sabem que  doutor é quem cursou doutorado e não quem só fez a faculdade e se veste de branco.