sábado, 23 de fevereiro de 2008

TELELIGADOS - a culpa é da TV


O mundo moderno nos torna escravos dos confortos da tecnologia. Ficamos muito irritados quando, por exemplo, a luz vai embora subitamente e nos deixa sem suas benesses.
Naquela família, o horário da novela era sagrado, ou melhor dizendo, das novelas. Todos se reuniam em frente a mágica caixa de luzes e ficavam extasiados com os dramas mexicanos de Aluísio Rogério, Augusto Fernando, Carla Patrícia, Sílvia Isadora e outros nomes duplos de gostos, sonoridade e combinação duvidosos.
Na novela das seis, a família vibrava entretendo-se com o drama de uma moça rica que sonhava com o verdadeiro amor, mas se via obrigada a casar contra seu gosto com um rapaz escolhido por seu pai. Na das sete, uma moça pobre que se apaixona por um rapaz rico, mas a família do rapaz não deixa e sofre ao descobrir que ele tem uma terrível doença, um castigo de Deus. Na das oito, vemos amores proibidos, arrivismo, terríveis doenças, vingança e o bandido sempre se dando mal no fim da história. Ufa ! Ainda bem !
No último capítulo da novela “Aqui se faz, aqui se paga”, todos já estavam na frente do aparelho. Meus Deus, só faltam alguns comerciais para saber se Eugênia Ricarda vai conseguir se casar com Alex Dagoberto Junqueira Paiva III, o herdeiro do grupo Junqueira Paiva, um imenso complexo industrial que produz laxantes e fraldas descartáveis.
Como a espera me angustia !
Mas o destino é um grande pregador de peças e faz das suas. Quando entra a chamada... a luz vai embora. Imprecações soam pela sala. A família está irada com a situação. Telefonam insistentemente para a companhia de luz, mas de nada adianta o chilique coletivo. A pane foi na cidade toda.
O bom senso surge quando em meio a escuridão alguém acende uma vela. Eles se olham um pouco que assustados um para o outro e descobrem que em muitos anos nunca haviam se visto por ali àquela hora da noite.


“Ué, mãe ! Você por aqui ? “
“Querida ! Eu não te via por aqui desde...”
“Amor proibido, 1968 ?”
“Não. Muito antes. Desde o Direito de ser feliz, 1664”
“Nós nos vimos meio de passagem em A honra de minha filha, 1972”
“Foi tudo tão rápido que pensei ser uma miragem ou algo parecido.”
“O que você faz aqui ?”
“Vejo televisão !”
“Ó ! Eu também.”
Os filhos se olharam, perceberam o clima de namoro entre os dois e discretamente retiraram-se da sala.
“Você não mudou nada estes anos todos. Na verdade está cada vez mais linda.”
Ela respondeu com um sorriso e as duas mãos se tocaram sobre o sofá. Um calor percorreu-lhes o corpo e um arrepio eriçou-lhes os finos pêlos do braço. Uma longa conversa se iniciou e falavam animadamente sobre seus gostos, seus projetos, seus anseios e temores àquela hora da noite.
O doce idílio prolongou-se durante muitos minutos e combinaram se encontrar para saírem ou ficarem por ali mesmo.
“O que você sugere ?”
“Não sei. O que você quiser eu topo. Com você tudo é fantástico.”
E se beijaram à luz das velas.
“Que tal se a gente fosse jantar fora, ao cinema, sei lá qualquer lugar só nosso, hein...” Sorriu fazendo-se entender rápido.
“É ... Quanto tempo ...!” Suspirou ela.
“Ou então, que tal ... a gente... aqui mesmo...” Risadas contidas.
“Seu bobo e as crianças ? Ficou doidinho ?” Mais risadas.
“É... aqui mesmo. A gente até que podia...”
Mas neste meio tempo a luz volta e gritam quase que em uníssono:
“Ver televisão !”
Ligam a TV imediatamente, os filhos voltam pra sala.
“Ufa ! Estava doida pra saber se o rapaz ( como é o nome dele mesmo ? ) ia se casar com aquela moça do comercial de shampoo. “
“Vai. É claro !”
“Como é que você sabe ?”
“Li no jornal.”
“Puxa ! Perdeu a graça.”
“É.. Vamos fazer uma coisa diferente ?” Risinhos marotos novamente.
“Meu filho, troca de canal ?”
E discretamente ele sussura no ouvido da mulher fazendo-a se arrepiar todinha:
“Adoro este sistema de TV a cabo por assinatura”
”Ai, seu bobinho ! Olha as crianças na sala. Comporte-se !”
(LEITE, Marcelo. Ladrão de Histórias e tantas histórias.)