domingo, 2 de maio de 2021

Atualizando o conceito de perdão

Sofrer com o mal que nosso semelhante nos causa é inevitável e o pré-requisito para isso é estar vivo. Não precisa de nada além. E revertendo o fluxo das coisas, também somos capazes de causar o mal ao outro, mesmo que não intencionalmente. Afinal, não somos a alma pura que imaginamos ser.

Desse mal, brota o ressentimento e com ele a mágoa. Até aí, tudo bem e normal. Ninguém sofre com a maldade e abre um sorriso no rosto de gratidão para seu algoz ou ao menos, se põe indiferente ao fato que lhe ocorreu. Isso é humano. Mas onde reside o problema então? Primeiramente, no conceito de que chamo de inevitabilidade e irreversibilidade dos fatos; depois, no conceito dogmático de perdão. Bem vejamos…

Estar vivo é estar exposto às ações dos outros, isso é um fato. Sejam elas boas ou más, somos atingidos de alguma forma porque estamos no raio de ação existencial de outro. Uma ação pode ser direcionada para nós ou meramente sermos atingidos pelos efeitos colaterais dela. Isso é a inevitabilidade, não tem como se evitar. A irreversibilidade se refere ao fato de, ocorrido um evento na linha temporal de sua existência e passado esse evento, a capacidade de alterá-lo é inexistente. Os acontecimentos passados são irreversíveis. 

Sendo assim, estamos sujeitos a ações e efeitos colaterais dessas e não podemos fugir disso. Aceite como algo do mundo e aprenda a tratar a maneira como você lida com isso. O fato é inevitável e irreversível, mas a maneira como você lida com isso faz toda a diferença na sua vida. 

O segundo problema é a conceituação de perdão nascida na ideia cristã de "dar a outra face" que é entendida erroneamente como se expor para que o outro lhe faça o mal novamente, afinal o mal está nele e isso te faz superior e blá, blá, blá… Duvido que Cristo tenho querido dizer isso. Acredito mais no sentido que dar a outra face é não revidar, é fazer de outro jeito. Se me ofendeu, não vou te ofender, se matou alguém, não vou te matar também porque isso me iguala a você e não resolver o problema. Isso é uma tentativa de romper o tóxico ciclo do dente-por-dente-olho-por-olho

Perdoar não é esquecer, isso é amnésia. Perdoar não é soltar algo preso dentro de você, isso é laxante, perdoar não é aceitar o outro como nada tivesse acontecido depois que ele lhe fez muito mal, isso é burrice. Então, o que é perdoar?

Perdoar é entender que o mundo é como é e as pessoas são como são. Por mais que isso lhe incomode, você deve entender para seu bem que suas dores vêm do abismo que existe entre o que as pessoas são e o que você espera ou pensa que elas deveriam ser. A dor e a frustração não nasce nas coisas, mas no que esperávamos delas e não se concretizou. 

O perdão nasce na compreensão de que ser atingido pelas ações dos outros é algo inevitável, uma vez atingido, os eventos passados são irreversíveis. Bom, a partir daí, é você quem lida com os resíduos emocionais deixados. Podemos remoer as dores e ficar preso no tempo àquele momento de sofrimento, isso é nocivo, pois nos atrelamos ao imutável e dispensamos energia vital ou entendemos que viver é colecionar fantasmas. Isso é normal. Perdoar, em resumo, é minimizar os danos do irreversível. Viver é colecionar fantasmas, não tem jeito. Até as pessoas felizes nos posts do Instagram possuem seus monstros. Não se iluda. Eles ficarão sempre lá, em uma esquina escura. Se você ligar a luz do poste eles estarão lá. Se apagar, eles estarão lá também. O problema não são eles, mas a dimensão que você dá ao que eles um dia representaram em sua história.