sábado, 30 de janeiro de 2021

Eu, na promoção

As redes sociais não trouxeram nenhuma novidade quando se trata das carências ou das mazelas humanas (como queiram chamar...). Elas só amplificaram o que sempre existiu. Aquele cara que gostava de contar vantagens em rodas de amigos, mostrar como era feliz e bem sucedido ainda existe, só que dessa vez, ele só precisa postar. Não precisam marcar um churrasco. Ele não precisa mais nos encontrar para fazer seu marketing. E isso, penso eu, poupa-nos da convivência. Gosto disso...

Entretanto, as pessoas, hoje em dia, sentem uma necessidade absurda de fazer da sua rede social uma vitrine onde se colocam como produto mais bem sucedido (férias em praia, resorts, corpos malhados, dirigindo carros etc), como o melhor exemplo da evolução humana (pessoas comprometidas com causas, que se doem com a dor do outro o tempo todo...) Vendem-se como um espírito em um nível de evolução que Chico Xavier olharia e pensaria: quando crescer quero ser igual a esse cara

O problema é que, em um mundo em que impera a obrigatoriedade do sucesso e do politicamente correto, para ser do bem o tempo todo, o caminho mais curto (e, às vezes, único) é convencer os outros disso. Certa vez, eu li que o que vale não é o que somos, mas o que as pessoas pensam que somos. Essas pessoas acreditam nisso mesmo e tem um monte de gente que conhecemos bem pessoalmente, mas quando olhamos sua rede social pensamos: gente, será a mesma pessoa? Dá vontade de dizer: olha não quero mais ser seu amigo real, quero ser amigo virtual só do seu perfil na rede social.

Não há mal nenhum postar sua vida nas redes socais e dizer como você é bem sucedido, consciente e do bem. Postar algo que te faz feliz é bem legal. O problema acontece quando as redes sociais se tornam um alter ego seu, aquilo que você queria ser ou ao menos, aquilo que você queria que os outros acreditassem que você é. As postagens se tornam repetitivas e diárias e acabam despertando a inveja dos que não te conhecem bem e, muitas vezes, o sentimento de tentativa engodo para os que te conhecem bem.

Somos humanos, demasiadamente humanos. Lotados de defeitos com respingos de algumas qualidades que nem de longe disfarçam nossa imperfeição inata. O marketing de teclado alivia esse sentimento, mas a realidade nos obriga a conviver com ele. Não sei mesmo até que ponto eu quero conviver com o que queria ser para não ter que conviver o que sou. Acho menos desgastante (mas não menos dolorido) lidar com o que sou do que despender vital energia para manter uma imagem do que queria ser. O fato é que a maioria das pessoas não se dá conta disso. Mas tudo bem também... E la nave va... 

Fecho com a Zélia Duncan na música Carne e Osso: "Perfeição demais me agita os instintos / Quem se diz muito perfeito / Na certa encontrou um jeito insosso / Pra não ser de carne e osso, pra não ser." Demorei quase meio século para me habituar a conviver com quem eu sou, embora ainda descubra facetas novas a cada dia e, agora não abro mão disso.

Até porque, nem se quisesse conseguiria abrir mão... O que somos é a única coisa que levamos até para o túmulo.

 

domingo, 24 de janeiro de 2021

Vai ficar tudo bem

Há pessoas que mudam muito durante a vida, eu pessoalmente, sou uma delas. Afinal, meus pais, só que eu me lembre, mudaram umas 14 vezes. No meu caso, depois que deixei de morar com eles, já morei em três casas a mais também. Ou seja, estou falando de 17 mudanças nesse meio século de vida.

Mas metaforicamente falando, mudamos tanto que vivemos várias vidas dentro de uma vida. Olhar sua história é revisitar moradas dentro de si mesmo. 

Nessa última mudança, enquanto arrumava meus livros na estante, consegui ver que cada um deles contava uma história que não estava escrita nas páginas, mas dentro da minha cabeça. Um, eu comprei em 1997, em uma lojinha embaixo da biblioteca Nacional, outro eu comprei para usar um capítulo, outro eu comprei na surpresa quando estava em um congresso, outro para embasar um projeto de pesquisa… Cada um contava uma história que não estava ali no papel, mas em mim. 

Nesse momento, percebi que eu carregava dentro de mim, um cemitério de EUs. Em cada momento, cada livro me remetia a um EU completamente diferente do EU de agora, de histórias que pareciam ser de outra pessoa, mas estranhamente, era um amontoados de EUs. Cada um no seu tempo, feito de carne, osso, história e decisões que me fizeram chegar no EU de agora.

Hoje, todos aqueles EUs são um quadro pendurado na parede (como a Itabira de Drummond, só uma fotografia na parede), ou melhor, um livro na estante. E um dia, esse EU de agora vai embora e comigo irão as histórias e os livros voltam a ser só papéis com letras. 

Nesse exercício de meditação, revisitei os meus EUs e exercitei a compaixão com cada um deles, entendi os medos, os sonhos, as angústias. Como se, em uma viagem no tempo, eu pudesse abraçar cada um de mim e dizer "vai ficar tudo bem". E como se cada um me olhasse nos olhos e entendesse que é assim que a história flui. E acalmasse o meu coração.

Em um segundo momento, nessa viagem, pude ver um velho, na verdade, vários homens velhos, como em uma fila, de costas para mim. Por alguns instantes, senti a compaixão que deles emanava para mim e a sensação de que, a qualquer momento um deles se viraria e abraçaria o que estava logo atrás na fila dizendo e aliviando toda a ansiedade... "vai ficar tudo bem"..


Revisitar a própria história é um exercício de compaixão consigo mesmo e um passo para a compreensão do que somos e onde estamos. Um exercício para entender que, haja o que houver, esse é um fluxo da história e que, no final das contas, vai ficar tudo bem.