terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Da série ambiente de trabalho VII : o aspirante à pombo correio

Sempre bem informado, Silvonaldo se encarregava de fazer com que qualquer notícia que saísse no cafezinho chegasse aos departamentos da empresa o mais rápido possível. Via aquilo como uma vocação, um destino traçado pelos deuses para ele. A isso somava seus dons de interpretação que davam às histórias um tom épico e fazia de qualquer batidinha de trânsito, um acidente de três carretas, um caminhão tanque, um ônibus escolar... dezenas de mortos e feridos.
Mas o seu maior prazer eram as notícias da empresa, a foice. Toda semana em fim de mês, ele chegava com a mesma conversa:
- Sei não, estão dizendo que vai haver um corte e o chefe já está com todos os nomes na mesa dele.
Outra vez...
- Sei não, dizem por aí que décimo terceiro este ano.. huuum nem pensar...
E variava...
- A firma está quebrada... ouvi dizer que nem sabem se vai haver pagamento no mês que vem.
Era sempre a mesma história e aquilo lhe dava um prazer quase sexual. Mas o fato é que havia pagamento em dia, não havia demissões e o décimo terceiro saía religiosamente antes do Natal...
Um dia se encheram do Sivonaldo e o colocaram na rua.
...
Com uma cartolina ele exibia uma frase na frente do prédio durante aquela tarde.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Eu sou trabalhador, seu Doutor. E outras palavras que redimem

O que me impressiona no criminoso é a capacidade que tem de negar. Nega tanto que convence advogado, populares, o júri e até ele mesmo de que é inocente.
Se há testemunhas, não
estava claro; se estava claro, não viram direito; se viram direito; o crime foi por legítima defesa. Mas legítima defesa??? Foi um roubo seguido de morte, latrocínio? Pois, então, a legítima defesa de não morrer de fome. Mas foi um carro que foi roubado!!! Pois então, roubara o carro para procurar algo para comer... Não havia um lugar sequer por ali que desse para ir á pé... e dinheiro para o ônibus não tinha. Pobre vítima do sistema.
O fato é que o rapaz era trabalhador e não merecia ser preso.


Pois sim...trabalhador do tráfico
.

Mas trabalhador em um mundo onde só lhe deram essa oportunidade. Coitado.


A família da vítima já começava a se compadecer do bandido...
O rapaz é trabalhador... mais uma vez e todos na sala se sentiam vagabundos diante daquele injustiçado trabalhador. O rapaz, em face de todas as acusações, curvava as sobrancelhas para cima e esboçava uma lágrima que escorria pelo rosto como água cristalina pela pedra.

Trabalhador
.. repetia o homem.


Todos já entendiam tudo e sentiam até uma ponta de raiva da promotoria.
Como é que pode? Acusar um trabalhador.... promotor canalha.

O rapaz é trabalhador... ecoou por fim.
E todos os males se desfizeram... abriram-se a portas do céu, mais um novo anjo voava por lá...
Um anjo trabalhador...



Em tempo: Tem gente que acha que existem palavras que redimem de todos os pecados... E o pior é quando soa o coro nessa nau dos insensatos. Quando pretendem isentar alguém e colocá-lo acima de qualquer suspeita, dizem: Ele é trabalhador, ele é pai de família, ele é um homem de Deus....

E esquecem que trabalhadores, pais da família e homens de Deus, entre outros, também cometem crimes.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Da série ambiente de trabalho VI: o prestativo mal compreendido.

Puxa-saco é o escambau. Por ali, todo sujeito prestativo se confundia com puxa-saco e isso não era verdade. Cornélio era prestativo mal compreendido.
Quando pediam um voluntário, logo ele pulava na frente, depois iria descobrir do que se tratava. Entendia que o chefe era alguém de visão e que precisava de aliados para cumprir sua trajetória messiânica. Achava isso de todos os seus chefes em sua vida.
Sentia o seu momento de glória em velório de parente do chefe. Podia chegar perto, fazer cara de profunda tristeza, bater no ombro e dizer: meus sentimentos.

Considerava sempre de bom tom levar para o chefe alguma lembrança de suas viagens: ora a Caxambu, ora Monte Sião, ora Belford Roxo na casa de uma tia de sua esposa. O importante não é o valor, mas a lembrança. Isso é o que marca.. sempre dizia e repetia.


Mas naquele dia, já eram 10 horas e Cornélio não tinha dado as caras. 11, 12, 13... e nada. Já iam ligar para casa dele quando chegou um menino trazendo um atestado médico. Cornélio havia sido internado depois de um grave AVC, mas o que comoveu a todos foi um detalhe nessa história.
Nos últimos instantes de consciência, ainda restou-lhe forças para um último ato...


Junto ao atestado havia um bilhete meio amassado escrito a mão de letra trêmula:


Chefe, se o senhor espirrar na minha ausência...

Saúde!



Leia também...

Da série ambiente de trabalho I: O doente conveniente... o coitadinho!

Da série ambiente de trabalho II: O preconceito... o perseguido!

Da série ambiente de trabalho III: O amigo do chefe

Da série ambiente de trabalho IV: O afilhado do Almeida
Da série ambiente de trabalho V: o bonzinho.



quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

O que aprendemos (ou não) com os desastres naturais.

Sempre que nos vemos diante de uma tragédia como esta de Santa Catarina, nos perguntamos que lição tiramos disso. O que nós realmente aprendemos com a dor? Aprendemos que tragédia é o nome que damos a imprevidência e o descaso diante da possibilidade de uma adversidade.
Entendemos que erra quem constrói em uma área de risco de desabamento ou inundação, mas o pior é a conivência das autoridades políticas locais que se calam diante da opção ou falta de opção das pessoas que já perderam mais de 3, 4 vezes tudo e continuam construindo nos mesmos lugares.

- Vamos ajudá-los a reconstruir suas casas, dizem os políticos.
- Nos mesmos lugares? Pergunto eu.

Aprendemos também que ajudar é importante, mas que até, na hora de socorrer, os órgãos de mídia não se entendem e cada um abre uma conta em um banco diferente para ver quem arrecada mais dinheiro e IBOPE, é claro. Enquanto isso, as lágrimas da velhinha que perdeu tudo, ao som de uma música triste de violino, ampliam os pontos nos programas decadentes de domingo à noite.
Aprendemos que há uma mobilização em massa para doação de dinheiro cujas contas jamais são prestadas após as catástrofes (Mas que sujeito cruel sou eu que falo em prestação de contas numa situação dessas? Um monstro, certamente!). E entendemos que o governo pede o engajamento da população, mas não cogita a hipótese de criar, ainda que temporariamente, uma área livre de impostos para reduzir o custo de alimentos, remédios e materiais de construção nessas regiões atingidas.
Compreendemos, então, que é
possível lucrar na desgraça alheia e vender água, cimento, botijão de gás e comida com preços dobrados quando não há escolha da parte de quem compra. E assim fazer com que o vento dos infortúnios sempre sopre a favor de alguém... que nunca serão o desafortunado, obviamente.
Aprendemos que somos um povo solidário e crédulo e que temos a certeza de que sempre há uma intervenção divina que impede que seja pior do que foi. Entendemos que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar e, afinal de contas, Deus é brasileiro.
Compreendemos, entendemos e aprendemos tudo isso.

***

Mas, no apagar das luzes, em uma semana, esquecemos tudo de novo.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Entendendo a conjuntura I - Deu em O GLOBO, 30/11

(uma pausa na série Ambiente de trabalho para entender uma coisinha..)

Brasil corre risco de levar calote de até US$ 5 bi de vizinhos
Venezuela, Bolívia, Paraguai e Equador auditam dívidas com BNDES

(Uma historinha para ajudar a entender)
Você tem um vizinho que é um sujeito de baixíssima credibilidade, vive cheio de dívidas, ganha dinheiro sabe-se lá como, o pouco que ganha, gasta mal, enfim, um desastre. Atualmente, ele precisa de dinheiro para fazer uma obra, um puxadinho para receber a filha, que está grávida, e o namorado, que também não tem emprego e nem vontade de conseguir um. Nitidamente, o vizinho não tem condições de pagar suas dívidas e, se o tivesse, não teria intenção porque considera que você tem dinheiro além do que precisa e não custa nada da sua parte ceder um pouco do seu.
O vizinho vem e lhe pede dinheiro emprestado.
Você emprestaria?

...

Pois é, o BNDES emprestou.
Isso não é um banco, é uma mãe.

sábado, 29 de novembro de 2008

Onomatopéias sem as quais nossa vida não seria a mesma.

Cadê você... "pa, pa, pa, pa" (back vocal).. que nunca mais apareceu aqui

Canta-se em uma música estilo bregão romântico que meu vizinho ouve à exaustão (exaustão minha, pelo jeito, não dele)... Até bonitinha (olha a lavagem cerebral funcionando), mas tão doce que se gravou um versão diet para diabéticos e uma light para pessoas em regime alimentar do tipo “sem açúcar”.
Mas não é o só "pa, pa, pa, pa" que me chama a atenção. Penso que as onomatopéias dão uma grande contribuição para música popular. Pensem no que seria de um bom samba enredo sem um "oooooooiii", no início do samba e um "ôô ôô ôô"... no final. E Claudinho e Bochecha, não teriam sido os mesmos sem "oh ié... oh iéééé"...
Vamos ser internacionais e imaginar uma boa rumba sem o "uuuhh" no final. Aquele "uuuhhh" que brota das profundezas de seu ser, como se o saco do cara tivesse sido atingido por um chute de alguém que usava uma bota ponta de ferro, daquelas que se usam em siderúrgica como material de proteção... Mulheres, vocês nunca conseguirão fazer idéia do que isso quer dizer... mas tentem. É intenso...
E, nos tempos dos festivais, nas rodinhas de amigos, sempre tinha um "lá lá iá, lá ia"... “Por onde for, quero ser seu par”. Aquilo era a salvação dos que esqueciam as letras, um espécie de refúgio dos desmemoriados amantes da música. De outra forma, éramos obrigados a ouvir o cara cantando errado e ficar na dúvida corrijo ou não?
- Cazuza.. vamos lá... “A toxina ta cheia de ratos...
- É... na verdade, é “a tua piscina está cheia de ratos...”
- Vamos cantar outra então: Kid Abelha “Procuro evitar comparações entre cores e decorações..”
- Bem .. na letra, é “flores e declarações”...
Então, mandamos bem... Cláudio Zoli...
- “Na madrugada, vitrola rolando um blues, tocando de biquíni sem parar...”
- Agora, parou, me dá essa porra desse violão.. parou, parou, parou... Que “tocando de biquíni”? O Claudio Zoli, de biquíni, de madrugada, e a vitrola ligada... Pelo jeito não dava nem para ouvir o que o cara estava tocando de biquíni, né.. Presta atenção: to-can-do BB king sem parar, porra...!

Eis um silêncio..

- o BB King estava de biquíni? Argh... Que tosco....

Por favor, tragam as onomatopéias de volta.

---x---


Em tempo: Na foto, BB King.. e nenhum biquíni em questão.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Da série ambiente de trabalho V: o bonzinho.

O cara não é chato, chato é quem diz que o cara é chato. O cara é prestativo. Astolfo estava sempre lá quando você precisava e, infelizmente, quando não se precisava dele também. Trazia bolinho que a mulher dele fazia para dividir com o pessoal, e, quando você menos esperava, ele ia a sua casa para comer o bolinho você tinha comprado. Gostava de se abrir com os colegas, falava de seus problemas pessoais, afetivos, financeiros, até sobre suas hemorróidas já se abrira com os colegas. Se o encontrava no mercado, ele o acompanhava durante as compras toda só para fazer companhia. Durante o período, falava somente do seu trabalho. Astolfo gostava do seu trabalho e de falar sobre ele... o tempo todo.

Mandava sempre uns 10 e-mails para você por dia com piadas, correntes, notícias de criancinhas desaparecidas. Astolfo adorava compartilhar. Quando foi nomeado chefe da seção, Astolfo marcou uma apresentação para descontrair os colegas em que apresentou duas horas de um vídeo sobre vinho que ganhou de presente de um cunhado dele. Astolfo queria ver os colegas bem informados.

Mas naquele dia, Astolfo tomou um baque na sua vida... Sobre sua mesa jazia um bilhetinho semi-aberto com os dizeres:

Astolfo,
Morre, desagraçado!
Ass.: anônimo.

Astolfo nunca imaginou que houvesse alguém naquela repartição que detestasse tanto vinho.



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Da série ambiente de trabalho I: O doente conveniente... o coitadinho!

Da série ambiente de trabalho II: O preconceito... o perseguido!

Da série ambiente de trabalho III: O amigo do chefe

Da série ambiente de trabalho IV: O afilhado do Almeida


terça-feira, 25 de novembro de 2008

Da série ambiente de trabalho IV: O afilhado do Almeida

O Dr. Almeida é como uma entidade espiritual, está presente sem ser notado e todos acabam lhe pedindo favores algum dia. O afilhado do Almeida chegou assim no RH da empresa. Quando souberam quem era, logo trataram de lhe contratar para um cargo qualquer. Afinal, o cara é afilhado do homem e a gente nunca sabe quando vai precisar dele. Horário era para os mortais, pois o afilhado do Dr. Almeida não podia ser submetido a isso. Lista de corte, o afilhado do Almeida estava fora. Alguém é louco de desagradar o homem? Só tinha até a quarta série, mas quem precisa de mais quando se tem o Almeida como padrinho? Tirava licenças médicas uma atrás da outra, mas questionar o excesso.. nem pensar. Cara, você sabe com que está lidando? Então fica na sua...

Um dia, o Dr. Almeida faleceu quando caminhava de casa para a repartição em que trabalhava como chefe... No dia seguinte, a empresa teve uma redução de despesas com pessoal... o afilhado do Dr. Almeida foi para a rua.

Na porta do RH chegava um rapazinho franzino, branquinho, de pernas arqueadas e óculos e se apresentava:

- Bom dia, eu vim deixar meu currículo, seu sou sobrinho do Dr. Caldeira lá da repartição, que ficou no lugar do falecido Dr. Almeida...

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sábado, 22 de novembro de 2008

Vilões de mentirinha.. desses eu gosto.

Eu gosto mesmo é dos vilões de mentirinha. São charmosos, irônicos, levemente sádicos, mas acima de tudo de uma ingenuidade cativante. São sempre poupados pelo herói que opta por não matá-lo com o argumento de que, se o fizer, estará se igualando a ele. E pulamos de indignação com a sua gentileza hollywoodiana. Ah se fosse eu... ah se fosse.

Mas o grande charme desse vilão é sua ingenuidade. Depois de um plano altamente elaborado e que nos deixa de queixo caído, ele captura o mocinho e, antes de executá-lo oferece-lhe todo o roteiro. Conta-lhe como ele o pegou, como o plano foi montado, quais as pessoas que o traíram e, finalmente, como ele será assassinado. É como se o bandido fizesse um relatório geral ao mocinho para torná-lo inteirado do que se passou. Quando o mocinho diz: - já entendi tudo. A platéia já o fez há uns 20 minutos pelo menos... mocinhos são sempre meio lesados. Eu gosto é dos vilões de mentirinha.

No final, tudo vai por água abaixo, pois o mocinho escapa e ainda pune o vilão... Lamentamos que ele tenha uma língua (e uma vaidade) tão grande. Lamentamos, mas continuamos gostando dos vilões de mentirinha.

Queria um mundo de vilões de mentirinha, os vilões de verdade não capturam pessoas e relatam seus planos que, aliás, não são complexos e ficam escondidos atrás de sorrisos sonsos de Monalisa. Os planos dos vilões de verdade não têm nada de engenhoso. Baseiam-se na estrutura clássica de fofoca, mentira, simulação... Se eles são velhos, usam as rugas para se esconder e tentam-nos fazer esquecer que os canalhas também envelhecem. Os vilões de verdade adoram rótulos que os enquadrem como minoria de alguma coisa. É como se fosse um salvo conduto contra qualquer medida que viesse a ser tomada com relação às suas vilanias. Os vilões de verdade jamais assumem o que vão fazer, sempre estão cumprindo ordens ou atribuindo suas atitudes a outra pessoa. De saias ou calças, por trás de uma mesa, os vilões de verdade, dormem e acordam com a fobia de que um dia os descubram os desnudem em frente a todos. Medo incontrolável de que sua verdadeira face apareça, principalmente, no espelho de seu quarto.

Os vilões de verdade nem sempre são punidos no final. Às vezes, se aposentam e levam consigo todo o fel da maldade que moldaram durante a vida.

É, por isso, que eu gosto mesmo é dos vilões de mentirinha.