domingo, 4 de julho de 2021

O mundo não muda no atacado

Quando somos jovens queremos mudar o mundo no atacado, de uma vez, em um golpe só. Achamos que basta nos unir que tudo vai mudar porque unidos somos mais fortes. Só esquecemos de perguntar se o outro quer se unir a nós e desconsideramos que pessoas possuem interesses diferentes, realidades diferentes e nem todo mundo está disposto a comprar nossa proposta para um mundo melhor. Pessoalmente, tenho muito medo de propostas que apresentam uma supervalorização do coletivo seguida da anulação do indivíduo.. Isso é problemático demais e arriscado demais.

Pois é.. a maturidade nos ensina que o mundo só muda no varejo. No fundo, sabemos disso intuitivamente, mas mudar o mundo começando a mudar a si mesmo é muito complicado e desgastante. Tudo isso implica em mudar condutas, pensamentos, atitudes cotidianas que mudam  efetivamente nosso mundo e, como nosso mundo faz parte de um universo de mundos. Automaticamente, muda o mundo.

Muita gente se pergunta como lidar com aquele que não quer mudar a si a mesmo e sua resistência mantém esse universo de mundos em desarmonia. Primeiramente, tudo se encontra em movimento e de alguma forma, até quem não quer mudar muda sim. Não no ritmo que desejamos, mas muda. E, em segundo lugar, a velocidade dos movimentos em direção às mudanças ocorre no ritmo do livre arbítrio de cada um e não segundo nosso desejo. Respeitar o tempo do outro é parte da nossa evolução também.

As ideologias que pregam as mobilizações e a supremacia do coletivo acreditam de verdade que as coisas mudam na base do tranco. Isso é um engano e gera uma legião de pessoas que assumem para si a missão messiânica de mudar o mundo convencendo o outro a mudar mundo… que irá convencer outros a mudarem o mundo. Isso é inócuo e, olhando de perto não faz o menor sentido. O mundo muda com 1% de ideias e 99% de atitudes. E muita gente não consegue sair do 1%.

Eis a razão pela que se engajar na luta pelas crianças desnutridas da África é mais interessante do que pelas crianças em família que passam por necessidade na periferia de sua cidade. A indignação rende discursos, textos no Facebook, vídeo curtos com o celular na vertical e morre ali. Não demanda ação alguma. Miseráveis de longe são ótimos para a promoção do marketing pessoal nas redes, já os da periferia custam tempo, dinheiro e estão perto demais da nossa realidade, longe demais das redes sociais.

Uma vez conversava com um colega me dizia que essas campanhas de alimento e agasalho, por exemplo, não resolve porque milhões de pessoas ainda seguem sentindo fome e frio (daí ele não ajudar em nada). Era assistencialismo barato da burguesia capitalista. E eu perguntei: Mas não ajuda a reduzir a carência da pessoa beneficiada? E ele respondeu: É... mais o problema ainda está lá no sistema.

Moral da história: se não for para mudar o mundo todo de uma vez, não faço nada. Se não for para beneficiar 100%, não faço nada para ninguém.

Ele não entendeu que o mundo não muda no atacado mesmo… ou entendeu.



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domingo, 27 de junho de 2021

O que vejo e o que as coisas são

Nietzsche dizia que não temos acesso à verdade dos fatos, mas a narrativas. Mesmo aquilo que presenciamos, uma vez registrado no nosso universo de informação se torna uma narrativa e todas as vezes que retomamos o fato presenciado, retomamos a narrativa construída por nós mesmos. Sim.. Estamos diante de uma intangibilidade da verdade pura e uma multiplicidade de narrativas. Coisa doida, né? Pois é.

O fato é que enxergamos o mundo através de lentes que só permitem a visão do que elas filtram. Lentes formadas por nossa experiência pessoal, nossa formação cultural, nossos interesses pessoais e uma infinidade de fatores que me levam a crer que não enxergamos o mundo necessariamente por aquilo que queremos ver (como pensei muito tempo), mas por aquilo que conseguimos ver.

Assim como no livro O mágico de Oz (The Wonderful Wizard of Oz - romance de L. Frank Baum) que virou filme, em que havia a cidade das esmeraldas porque o mágico obrigava que todos usassem óculos de lentes verdes, vejo que, muitas vezes, o que as pessoas veem é aquilo que surge através de óculos verdes e acham que toda cidade é feita de esmeralda mesmo. 

Isso ajuda muito a entender a cegueira ideológica que temos hoje. Os radicais de esquerda, que, no fundo, são iguais aos radicais de direita, uma vez que são duas faces da mesma moeda, enxergam o mundo através de lentes muito pessoais e constroem narrativas que atendem ao conjunto de verdades que escolheram com base naquele mundo que conseguem enxergar. Aliás, um mundo pleno de uma lógica pessoal, própria e conveniente.

O meu medo é que, no desconhecimento dos óculos que carregam no rosto e que distorcem o mundo para caber nas suas crenças, os limites se esvaiam e as ações passem a ter o fim como justificativa suprema um bem maior. Os nazistas acreditavam nisso, os fascistas acreditavam nisso, Mao Tse tung acreditava nisso, os comunistas acreditavam nisso, todos traziam a certeza de estarem agindo pelo bem comum lutando por um mundo melhor. Os óculos que usavam só permitiam ver isso..

Podemos encerrar a discussão se nazismo é de direita ou de esquerda dizendo que, na verdade, no sentido metafórico da palavra (governo autoritário, opressivo, violento, ditatorial etc) ele é dos radicais de ambos os lados que seguem enxergando o mundo pelas suas lentes e elegendo como inimigos aqueles que não aceitam ver as coisas como eles veem. Isso gera inclusive, hoje em dia, o ódio ao "isentão", que é o nome que dão aquela pessoa que não quer assumir a ideologia dela. Já expliquei isso aqui no blog.

Abrir mão desses óculos de ver o mundo  nu e cru é quase impossível, mas é importante saber usar lentes multifocais e entender que o mundo não é um produto, mas um processo e sendo assim, nunca vemos o como É, mas o como ESTÁ.


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domingo, 20 de junho de 2021

Entre o útero e o túmulo

Costumo dizer que a vida é um trajeto sinuoso (e tortuoso) entre duas proparoxítonas: o útero e o túmulo. Também comparo a uma viagem de avião que sabemos como termina, mas não sabemos onde vai haver escala ou conexão e, só reconhecemos que há um voo que é medido pelo combustível que temos na aeronave e, de verdade, não fazemos ideia de quanta gasolina ainda há. É isso…

Sem manuais de instrução, você vai seguindo viagem e aprendendo a pilotar a aeronave enquanto ela voa. O fato é que quanto mais pilotamos, mais entendemos sobre ela. É claro que sempre será insuficiente para compreender a complexidade disso tudo. E claro também que é um conhecimento muito pessoal e quase intransferível, mas ainda assim, na véspera de completar 50 anos, resolvi compartilhar algumas observações. Vão ajudar a tornar viagens mais fáceis…. creio que não. Mas é mais a catarse mesmo de um homem que hoje está mais perto da proparoxítona final.

1. Não barganhe com a vida. De forma macro, as coisas vão acontecer em um fluxo alheio a sua vontade. Pessoas boas morrem de câncer, canalhas vivem até 100 anos, pessoas boas passam na miséria, canalhas vivem na fartura.. isso vai acontecer. É assim. A lei do retorno beira uma farsa que criamos para nos consolar quando nos ferramos na mão de alguém. Não é assim que a banda toca.

2. O maior beneficiado da sua boa conduta é você mesmo. Não vai haver troféu no fim da corrida ou pódio de chegada e beijo de namorada. Você já ganhou seu prêmio agindo assim e deixando de ser mais um fdp em um mundo com tantos.

3. Amar não é fazer com que o outro tenha uma vida sem dores ou sofrimento. Tipo o pequeno Príncipe colocando uma cúpula em volta da rosa. Isso é frustrante e impossível. Amar mesmo é respeitar o caminho de cada um e, no final, auxiliar se as coisas derem errado sem dizer o "viu, eu te disse" 

4. Se você fez algo por alguém para jogar na cara depois seria melhor não ter feito. Se você pretende jogar na cara algo que fez para obter algum benefício do outro, não faça. Isso é desonesto. Você sabe que está vendendo afeto/atenção. Só o outro é que, às vezes, não sabe que está comprando. 

5. As pessoas são o que elas são. O grande desafio é saber o que elas são. Você vai passar uma vida nessa leitura e, quando entender uma parte, elas mudam e você retorna ao ponto quase zero. É frustrante, mas é assim que rola.

6. Não nutra grandes expectativas com relação aos outros. É melhor receber mãos cheias quando esperávamos vazias do que vazias quando esperávamos cheias. Mas, nunca se esqueça, leve as suas mãos sempre cheias. A essência do outro não pode corromper a sua.

7. Todo mundo é capaz de tudo. O que as pessoas vão avaliar é a relação custo benefício e o momento. O que lidamos é com a relação do TUDO é possível, mas nem tudo é provável... pelo menos não naquele momento, não naquele contexto.  

8. As pessoas não conseguem, no geral, enxergar muito além do que gira em torno de seus interesses pessoais. É assim mesmo. Não cabe julgamento aqui. O exercício de ver além do que nos convém (e interessa) é o trabalho de uma vida. E aprendemos isso em doses homeopáticas.

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Proparoxítonas são chamadas de palavras esdrúxulas e nada mais caprichoso da vida do que se colocar a vida entre as duas. Faz a gente pensar.

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domingo, 13 de junho de 2021

Ódio ao isento... Por quê?

Outro dia, uma pessoa conhecida destilou no Facebook todo seu ódio ao que chamou de isentão, pessoas que não querem tomar posição política publicamente, por exemplo. Ela dizia que pior de todos eram aqueles que não se posicionavam diante das questões. Por trás disso, existe a ideia desconfortavelmente autoritária de que quem não concorda comigo é ruim, mas quem não aceita concordar comigo é pior. Isso, porque se concordar com quem discorda de mim, se torna ruim, logo, só se torna bom aquele que concorda comigo. Entendeu?

Eu acho extremamente abusivas e autoritárias essas falas, já que retiram do indivíduo o direito de escolher não dizer o que pensa sobre um tema e que dá a falsa percepção de que ele não se posicionou quando, na maioria das vezes, ele se posicionou, mas não quer compartilhar com os outros a sua visão. Ou se trata de desinteresse em compartilhar com você, uma pessoa que a despeito da sua autoestima, ele considera alguém com quem não vale a pena compartilhar ideias. Doloroso para o ego imaginar isso, né? Mas acontece...

Pois é, mas nós não somos unanimidades e a maneira como nos veem nem sempre fechar com a maneira como nós pensamos que nos veem. Isso é o ponto de partida para lidar melhor com a ideia de que as pessoas podem ter um conceito não tão positivo a nosso respeito o quanto imaginamos que tenham. Daí, não terem o menor interesse em compartilhar suas opiniões com a gente. O que não quer dizer que elas são isentonas. Elas só não nos prezam o suficiente para investir seu tempo nos expondo suas opiniões. Foi duro entender isso, mas entendi e acho que um exercício de senso crítico ajuda bem nesse processo.

Sei que vivemos em grupo e as decisões de uns acabam afetando outros. Isso, inevitavelmente. Entretanto, antes de sermos grupos somos indivíduos dotados de interesses e escolhas. Isso deve ser respeitado, pois os grupos mudam e se desfazem, mas a individualidade só se dilui com a morte.

Acho preocupante toda ideologia que vise à anulação completa do indivíduo por um ideário comum e coletivo e, principalmente, dos meios que pretende para prevalecer isso. 


domingo, 6 de junho de 2021

Insaciável querer e a frustração

Outro dia eu lia sobre o que é felicidade, uma pergunta que o homem se faz desde sempre. No texto, o autor resumia a felicidade como um estado de paz interior constante, um bem estar prolongado que decorre da lucidez emocional, da capacidade de estar bem com você mesmo a maior parte do tempo. Algo muito longe da busca insaciável por momentos de satisfação que promovem um efeito de prazer momentâneo que se dilui com grande rapidez como se fosse uma droga ingerida.

O problema é que a sociedade alimenta o ideal de felicidade vendido nas novelas e nas propagandas. Felicidade é casar e ter filhos morando numa casa em que a esposa fica abanando a mão para se despedir das crianças que vão para a escola. Isso, depois de um café da manhã harmonioso que termina com um beijo na testa, um sorriso e um "vou indo que estou atrasado, querida".

Resumem felicidade a dinheiro, muito dinheiro e contradizem milhões de pessoas que vivem com pouco, mas trazem consigo uma aura de felicidade legítima. Diriam alguns, são alienados. Mas seriam eles ou nós os alienados?

A busca pela felicidade momentânea no mundo moderno (e que a mídia tanto divulga, pois, ela quer te convencer que sua felicidade está atrelada ao que querem te vender) promove, na verdade, duas coisas: o cansaço e a frustração. O cansaço, pois seguimos em um insaciável querer em que nunca nada nos satisfaz. Quando conseguimos uma coisa, aquela satisfação dura somente pouco tempo, uma vez que sempre há algo mais a se querer ali na frente que já queremos. Isso provoca um exaurimento de energia vital decorrente de nunca estar satisfeito de verdade. 

O segundo efeito é a frustração. São fornecidos a nós modelos de felicidade como roupa pronta e algumas pessoas realmente conseguem atingir esse modelo (ou algo bem próximo) e, inevitavelmente, nos pegamos nos comparando com fulano tem uma família feliz, com sicrano é bem sucedido e, a partir daí, fazemos uma mensuração do "nosso fracasso". Aí nasce a imensa frustração de não ter tido sucesso algum.

Esse é o problema. A medida do fracasso ou do sucesso nunca é tangível por índices, pois esses conceitos são externos a nós mesmos enquanto o êxito real é o cultivo da vida interior em um estado de paz e lucidez emocional (eu sei o que sinto, de onde vem e entendo a dimensão que permito que isso deve ter na minha vida). É importante entender que a régua que mede meu sucesso não é as postagens do Instagram onde todos são felizes, onde todos são bem sucedidos e, na verdade, onde todos pintam a tela para mostrar aos outros a imagens que querem que eles vejam.

Enquanto muitas vezes, talvez, olhem outras postagens e pensem: como fulano tem uma família feliz, como sicrano é bem sucedido…. preciso, talvez…. quem sabe…. postar mais na praia.


domingo, 30 de maio de 2021

O que "vc" é hoje é o que "vc" sempre quis ser?

Outro dia,  vi essa perguntar em uma comunidade do Facebook e me pus a pensar na resposta. Acho que para ser respondida de forma mais madura a pergunta deveria ser: você está ciente de onde está e de que esse lugar é o resultado direto ou indireto das escolhas que você fez na vida? Aí sim, podemos começar a pensar em refletir mais claramente sobre a resposta. 

Quando mais novos queremos ser tanta coisa. Eu, por exemplo, quando criança, queria ser palhaço ou policial. Achava o máximo essas duas profissões. No início da adolescência, queria ser jornalista. No final dessa fase, a realidade financeira bateu na minha porta e descobri, como na música dos Engenheiros do Hawaii que, somos quem podemos ser. Por sorte, eu gostava muito de ensinar e também me realizava com isso. Daí, para me assumir como futuro professor, foi um pulinho. Eu me encontrei no magistério e a partir disso segui nesse caminho.

Mas mesmo já no magistério, em determinado momento, quiser ser diplomata e pensei seriamente em fazer prova para o Instituto Rio Branco. Depois quis ser empresário. E fui.. aí quis ser gestor. E também fui. Bom, hoje não sou necessariamente nada disso. Só professor mesmo. Aprendi muitas coisas, vivi muitas experiências e a pergunta se me tornei o que sempre quis não me soa adequada porque quis tantas coisas que não sei com o que alinhar o que sou com o que quis. Talvez se fizermos um recorte de o que quis quando, eu possa te responder que não.. Não consegui ser palhaço nem policial, o que queria quando criança, mas que consegui se professor, o que quis depois.

É aí que está. Comparar o que somos com o que os outros são ou com o que queríamos em determinados recortes de percepção da vida nos induz a um erro de análise e uma resposta que talvez não reflita bem nossa evolução pessoal.

O que você queria ser? Rico, famoso, reconhecido... Essas são respostas muito óbvias para temas tão complexos porque se a resposta é não aos quereres citados é porque em algum momento optamos por caminhos que nos levaram a ser outra coisa. A vida é feita de escolhas e preços que estamos dispostos a pagar ou não e queira ou não, somos nesse instante, o resultado das nossas escolhas que fizemos e preços por que pagamos.

Então, a resposta a pergunta é SIM. Eu sou mais do que o que sempre quis, sou o resultado do que escolhi em cada encruzilhada da vida e produto de cada preço por que paguei para chegar aqui. Sem pieguismo, mas produto de uma constatação óbvia, eu sou cada dia a melhor versão de mim mesmo. E, no fundo, sem verbalizar, sem teorizar, e de verdade, foi o que sempre quis mesmo.


domingo, 23 de maio de 2021

O Scar nosso de cada dia

Para quem não lembra ou não conhece, Scar é o irmão de Mufasa, tio do Simba do filme o rei leão. Sim, é aquele desenho da Disney e que fez muitas gerações ficaram com os olhos cheios d'água e que foi baseado na obra de Shakespeare, uma espécie de releitura ou como alguns chegaram a dizer: Shakespeare para crianças.

Mas o que poucos sabem que é que tanto na obra do dramaturgo inglês quanto no desenho da Disney, temos um retrato da alma humana e nos defrontamos com o fato que a única coisa que alguém precisa para nos fazer o mal é estarmos vivos. É lógico, se isso se soma a dinheiro, poder ou simplesmente ao egoísmo de ter o seu prazer atendido e ao vislumbre da impunidade do "se dar bem sem danos", a pergunta não é mais por que fazer? Mas, por que não fazer? Sempre seguida do raciocínio legitimador de que se fosso o outro, ele faria o mesmo.

No cinema, o vilão conduz as coisas para a morte de Mufasa e completa o seu plano culpando Simba da morte do pai porque Scar quer assumir o trono e, na ficção, até que ele se dá mal no final. O que nem sempre ocorre na vida real. Alguns poderiam dizer que ele era produto de uma construção social (Uma picaretagem intelectual da pós modernidade que legitima o ilegitimável. Uma espécie de reedição fuleira do mito do bom selvagem) de culto ao poder, mas em resumo, Scar era uma mau caráter e alguém cujo egoísmo era a energia geradora das ações.

A questão é que os Scars e os personagens de Shakespeare não se escondem nos livros e nas telas de cinema, eles dividem ambiente de trabalhos, frequentam mesmos círculos. São pessoas marcadas por algo mais nocivo do que maldade, o egoísmo, a fonte de toda a maldade. A fonte que legitima TUDO em nome do prazer pessoal.

Não há receita para lidar com essas pessoas, mas um caminho a se trilhar é saber que elas existem e admitir sem panos quentes que essa pessoa pode ser um colega, um vizinho, um familiar… Assim como na fábula do escorpião e do sapo, eles vão te picar, porque, afinal, é sua natureza. Aceitar a natureza do outro é se permitir não conviver, não se abrir, medir as palavras e, sobretudo não confiar. Tudo isso sem culpa por pensar ser um ato de retaliação ou hostilidade, mas por tratar-se de uma atitude legítima de autoproteção.

Aprender a dizer não, não quero, não vou, não posso, não te fazem ser alguém pior e também, acreditem, não interfere em nada no quanto as pessoas vão te amar. Não deixe que seu medo de não aceitação conduza suas decisões. Nunca se esqueça de que o número de SIM não vai se levado em conta no julgamento que fazem de você, mas sim o NÃO que você deu que definirá, de forma draconiana como irão te julgar. Não tenha medo de que não gostem de você. Não se esqueça de que a única coisa que as pessoas precisam para isso é que você exista. Muitas vezes só precisam de um empurrãozinho.. uma fofoca, um gesto, uma palavra mal entendida ou um não.

Se afastar de quem te intoxica ou ameaça de alguma forma não é um gesto de rancor, mas uma ação de autoproteção e garantidora da sua paz, um bem que não tem preço.

Scars rondam o nosso dia a dia e não pense que você está imune a eles, afinal, você atende o requisito básico: você existe.  Mas a boa notícia nisso tudo é que a escolha do quanto eles podem ter acesso a você é sempre sua.


domingo, 16 de maio de 2021

É... Não tem nenhum sentido mesmo

A grande pergunta da vida  "qual é o sentido da vida?" talvez possa ser respondida com um simples "o sentido da vida é que ela não tem sentido nenhum". E o mais impressionante disso é que isso não é uma constatação depressiva, melancólica, niilista ou de alguém que desistiu da vida em razão de tomar muita pancada. Não. É uma constatação plena de euforia e esperança.

O fato é que passamos a vida toda buscando um sentido e achando que é ser um bom profissional, um bom marido, um homem bem sucedido financeiramente, ser feliz, ser saudável, ser um bom pai… Enfim, passamos boa parte da vida correndo atrás do rabo e, quando pegamos (instante raro e momentâneo), ficamos com a sensação do "tá, e daí"... "Há outros sentidos ou posso ficar aqui com o rabo entre os dentes bem satisfeito com o que consegui?" Largamos o rabo e recomeçamos a caçada com a certeza de que, agora, o rabo, com nome diferente que atribuímos, é o verdadeiro sentido da vida. 

Um adendo aqui... Há um livro de um autor americano chamado Daniel Klein cujo título é Every Time I Find the Meaning of Life, They Change It - Cada vez que eu encontro o sentido da vida, eles mudam - muito interessante. Bom, o nosso raciocínio aqui segue bem por essa linha. Vamos lá.. retomemos.

Ser bom profissional, bom pai, bem sucedido, no fundo não faz muito sentido como fim, mas com tudo que construímos como meio. Até porque, no meio dessa caça, os sentidos mudam, desistimos, mudamos, refazemos… e o sentidos mudam porque ele não é da vida. Ele é nosso e nós sim, mudamos. Nós os criamos, atribuímos, nós os mudamos.

A vida, como tudo, não possui uma essência. Ela é um vazio que nos separa entre o útero e o túmulo. Por isso, o grande sentido é atribuir, nesse interregno, sentidos que rompam a confortável sensação da inércia natural do ser. A linguagem reflete isso quando dizemos "a vida passa". Aí é que está… ela não passa. Nós é que somos compelidos a passar enquanto ela se mantém estática como uma estrada sem tamanho conhecido que nos conduz entre as duas inexoráveis proparoxítonas (o útero e o túmulo).

O sentido não está na religião, na família, no trabalho, em uma guerra ou em uma luta por um mundo melhor, o sentido está onde eu puser e quando eu retirar, não existe mais. Veja pessoas que sofreram grandes perdas e depois disso dizem que a vida perdeu o sentido. Não. Ela nunca teve, ela é um vazio e o que se chama de sentido perdido é um sentido atribuído que como outros não são inerentes à vida, são nossos. E como senhor deles, podemos mudar, mover, retirar, ajustar ou mesmo desistir. E dizemos que a vida perdeu sentido. Não. A vida não perdeu… Ela nunca teve. Você, sim.

Dessa forma, o grande sentido dessa vida é encontrar, ressignificar, mudar sentidos para que o dia seguinte gere expectativa e não tédio, desalento e apatia. Quando vamos fazer uma grande viagem, ao deitarmos à noite, o sentido de tudo é aquela viagem e vivemos as etapas em função daquele momento que vai passar e pedir novos sentidos.

A vida ganha sentido quando entendemos que ela, por si só,  não tem nenhum e atribui-los é o X da questão. O X é sabermos que cada dia é uma grande viagem e se preparar e esperar sua chegada é o único sentido tangível.


domingo, 9 de maio de 2021

Permitir-se é um exercício de autocompaixão

As pessoas confundem a história de se permitir com se comprometer e, muitas vezes, diante de uma aquisição patrimonial, pensam "ah, eu trabalho, tanto, eu mereço" e acabam se encalacrando em dívidas. Permitir-se não é bem isso ou não só isso. Vamos, então, pegar essa lógica e aplicar a nossas emoções. 

Entendemos que sentir raiva, sentir mágoa, sentir ódio, sentir tristeza entre tantos "sentires" são ruins. E de fato, por muito tempo, são mesmo. Aprendemos que não devemos nos deixar invadir por esses sentimentos e devemos ser algo impassível diante dos fatos e imunes aos tais sentimentos negativos. Entretanto, buscar uma imunidade aos sentimentos negativos é procurar uma blindagem contra a nossa condição humana já que os sentimentos apresentados são dois lados da mesma moeda: ódio/amor, tristeza/alegria, mágoa/gratidão. 

Não há como ser imunes ou blindados a isso e nossa existência é o eterno pender entre os extremos em busca do equilíbrio. Contudo, buscando uma pseudo elevação espiritual momentânea somos condicionados ao fato de que devemos sentir amor, alegria e gratidão o tempo todo e jamais ódio, tristeza e mágoa em momento algum. Somos condicionados a negar nossa condição de seres imperfeitos e em primitivo desenvolvimento espiritual. 

Acho engraçado quando alguém fala "ah eu sou imperfeito" ou "eu tenho meus defeitos"... Uma constatação que, a meu ver, expressa uma falsa humildade já que enuncia o óbvio ululante. Sim. Eu sou humano. Ponto final.

É óbvio que não devemos deixar que sentimentos como ódio, mágoa, tristeza nos invadam e assumam o controle de nosso tempo e ações. Mas também, deixar que sejamos tomados de uma nuvem de amor, alegria e gratidão 100% do tempo nos criaria uma alienação em mundo que não é de amor, alegria e gratidão. Isso geraria em curto tempo um nível de frustração absurda porque o mundo não está nem aí para seu empenho e vai lhe dar o que ele quiser e não o mesmo que você deu. "Poxa, eu fui tão do bem, mas me trataram assim… ". É isso… acostume-se.

Ah, mas se todos mudarem de comportamento o mundo melhora. Sim... ideia óbvia. Agora só falta você convencer os outros 7 bilhões de pessoas no planeta a adotarem o seu projeto de paz e amor. Boa sorte na sua missão. Mas não vale se frustrar...

Por isso, se permita, mas não se contamine. É normal sentirmos raiva, tristeza, ódio, rancor durante algum tempo diante de situações da vida. São monstros que não têm como ser banidos da noite para o dia de nossa história. Temos sempre duas opções nesses cenários: deixá-los do lado de fora enquanto eles esmurram a porta ou deixá-los entrar para um café e vermos que não são tão assustadores quanto parecem quando esmurravam a porta lá fora. Terminado o café, nós os conduzimos até a porta e nos despedimos, porque ali, eles não podem morar.

Temos que ter compaixão com nós mesmos e anular o discurso acusatório de que não podemos sentir ódio, não podemos sentir raiva, não temos que estar tristes, não podemos desejar por uns instantes que alguém morra. Sim. Podemos. O que não podemos é deixar que esse sentimento se instale por longo prazo, ele está ali só para um café, só para nos darmos conta de nossa condição existencial e nos permitir ser humano com todas suas fraquezas e imperfeições.

Terminou o café, acompanhe até a porta e se despeça. Afinal, foi só um café.

E não se esqueça: ele vai voltar. Mas que seja sempre só para um café.