domingo, 24 de janeiro de 2021

Vai ficar tudo bem

Há pessoas que mudam muito durante a vida, eu pessoalmente, sou uma delas. Afinal, meus pais, só que eu me lembre, mudaram umas 14 vezes. No meu caso, depois que deixei de morar com eles, já morei em três casas a mais também. Ou seja, estou falando de 17 mudanças nesse meio século de vida.

Mas metaforicamente falando, mudamos tanto que vivemos várias vidas dentro de uma vida. Olhar sua história é revisitar moradas dentro de si mesmo. 

Nessa última mudança, enquanto arrumava meus livros na estante, consegui ver que cada um deles contava uma história que não estava escrita nas páginas, mas dentro da minha cabeça. Um, eu comprei em 1997, em uma lojinha embaixo da biblioteca Nacional, outro eu comprei para usar um capítulo, outro eu comprei na surpresa quando estava em um congresso, outro para embasar um projeto de pesquisa… Cada um contava uma história que não estava ali no papel, mas em mim. 

Nesse momento, percebi que eu carregava dentro de mim, um cemitério de EUs. Em cada momento, cada livro me remetia a um EU completamente diferente do EU de agora, de histórias que pareciam ser de outra pessoa, mas estranhamente, era um amontoados de EUs. Cada um no seu tempo, feito de carne, osso, história e decisões que me fizeram chegar no EU de agora.

Hoje, todos aqueles EUs são um quadro pendurado na parede (como a Itabira de Drummond, só uma fotografia na parede), ou melhor, um livro na estante. E um dia, esse EU de agora vai embora e comigo irão as histórias e os livros voltam a ser só papéis com letras. 

Nesse exercício de meditação, revisitei os meus EUs e exercitei a compaixão com cada um deles, entendi os medos, os sonhos, as angústias. Como se, em uma viagem no tempo, eu pudesse abraçar cada um de mim e dizer "vai ficar tudo bem". E como se cada um me olhasse nos olhos e entendesse que é assim que a história flui. E acalmasse o meu coração.

Em um segundo momento, nessa viagem, pude ver um velho, na verdade, vários homens velhos, como em uma fila, de costas para mim. Por alguns instantes, senti a compaixão que deles emanava para mim e a sensação de que, a qualquer momento um deles se viraria e abraçaria o que estava logo atrás na fila dizendo e aliviando toda a ansiedade... "vai ficar tudo bem"..


Revisitar a própria história é um exercício de compaixão consigo mesmo e um passo para a compreensão do que somos e onde estamos. Um exercício para entender que, haja o que houver, esse é um fluxo da história e que, no final das contas, vai ficar tudo bem.